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Foto do escritorAndré Luis Coutinho

Pobres Criaturas: o mundo colorido e distorcido de Lanthimos como reflexo do nosso mundo


Desde Dente Canino, o grego Yorgos Lanthimos traçou um caminho curioso dentro do cinema hollywoodiano, emprestando aos EUA sua identidade sórdida e até ousada com as narrativas que propunha. E desde sua estreia no mainstream com O Lagosta, o cineasta demonstrou um talento surpreendente para a comédia a partir do bizarro, do estranho, do desconfortável. Por isso, seus filmes posteriores, como o drama monárquico A Favorita e o inquietante O Sacrifício do Cervo Sagrado, apresentavam momentos cômicos, mesmo que originados de eventos até traumáticos.


E com isso, chegamos em Pobres Criaturas, talvez seu filme mais assumidamente bem-humorado e, ao contrário do resto de sua filmografia, extremamente lúdico, aproximando-se muitas vezes da fábula e do conto de fadas. A partir de uma história criada pelo autor Alasdair Gray que remete muito ao Frankenstein de Mary Shelley, o longa acompanha a esquisita Bella Baxter em uma aventura para conhecer o mundo - e todas as suas contradições - após ser liberta dos cuidados excessivos de seu criador God. E só o fato do cientista desfigurado vivido por Willem Dafoe ser chamado de “Deus” por sua criação demonstra não só a acidez humorística do livro-base como também a opção de Lanthimos ao não apenas manter esse fato como também ao acentuá-lo na perspectiva de Bella. E desde sua convivência com o cientista, Bella é apresentada às contradições desse mundo que a engole aos poucos. God representa um criador e um pai, mas também a prisão e a ciência inescrupulosa advinda de abusos passados.


O que nos traz à “liberdade” na figura do patético advogado vivido por um excelente Mark Ruffalo. Uma liberdade que, então, revela-se mais uma prisão, a prisão do patriarcado. E nesse ponto, Pobres Criaturas tece comentários que o aproximam de seu adversário de premiações Barbie - ou, no caso, uma versão torta e surrealista da comédia de Greta Gerwig. Conforme Bella vai expandindo sua visão de mundo e, com isso, descobrindo seus horrores no que tange a relações de poder (homens X mulheres, ricos X pobres, adultos X crianças…), o mundo de Lanthimos vai ficando cada vez menos vistoso a partir da lente de sua câmera. Menos colorido, menos onírico, mais sujo, mais dilapidado; porém ainda distorcido na perspectiva de suas lentes anamórficas - cujo único problema foi o uso compulsório da lente “olho de peixe”, que não serve para transmitir muito além de uma simples esquisitice visual cosmética, algo que já havia acontecido em A Favorita mas que lá, possuía um significado voyeurista bem mais patente.


E é justamente por esse processo de autodescobertas e desbravamento do mundo que a performance de Emma Stone é de uma beleza que transcende o puro esforço. Afinal, vemos aqui um corpo permanente que, aos poucos, vai evoluindo intelectual e psicologicamente por meio da literatura, de movimentos sociais e de suas próprias experiências. Basicamente, é um filme coming-of-age em que só o cérebro de Bella amadurece. E Stone alcança uma performance cheia de complexidades, que vai desde trejeitos infantis desajeitados a uma maior consciência que a torna mais fria e menos deslumbrada com o mundo.


E é claro que seu desprendimento com o corpo é impressionante, não só pelos seus movimentos esquisitos como também pelas cenas de sexo, já que Lanthimos as torna fundamentais para o processo de liberdade sexual pelo qual a protagonista também atravessa. Lanthimos, portanto, é o diretor perfeito para essa abordagem, já que trabalhava, em suas obras anteriores, o sexo como algo mecânico e estranho, até desagradável em seu contexto. Aqui, o diretor trabalha o sexo não com erotismo ou luxúria, mas como algo novo a ser descoberto que, aos poucos, vai se banalizando pela forma como é tratado no “mundo real” (temos aí mais uma contradição desvendada por Bella através do patriarcado).


Pobres Criaturas é um dos filmes mais interessantes de 2023 e dessa temporada de premiações. Ele não reinventa nada, não é um filme inovador em nenhum aspecto, mas trabalha a jornada de amadurecimento de sua estranha protagonista de forma imaginativa e deliciosa, com muito humor estranho que torna o mundo de Bella em um reflexo de nosso próprio mundo. Belo, fascinante, apaixonante e excitante, mas também cruel, injusto, contraditório e feio. No fim, portanto, todos nós podemos nos espelhar em Bella como pobres criaturas de um cientista chamado God. E essa talvez seja a maior ironia da carreira de Lanthimos!


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